quarta-feira, 21 de abril de 2010

Compartilhando: "Vista Cansada" texto para reflexão

Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta.
Um poeta é só isto: um certo modo de ver.

O problema é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não-vendo.

Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver.
Parece fácil, mas não é.

O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade.
O campo visual da nossa rotina é como um vazio.
Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta.

Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe.
De tanto ver, você não vê.

Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall
do prédio do seu escritório.

Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro.

Dava-lhe bom-dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência.

Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer.
Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima idéia.

Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer.

Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito,
pode ser também que ninguém desse por sua ausência.

O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem.
Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos.

E vemos? Não, não vemos.

Uma criança vê o que o adulto não vê.

Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo.

O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de fato, ninguém vê.

Há pai que nunca viu o próprio filho.
Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas.

Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos.

É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.

(Otto Lara Resende)

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